domingo, 9 de junho de 2013

Será a morte da narrativa?

Fabricia Aparecida da Silva, pós-graduanda em Processos Criativos em Teatro Contemporâneo pela FAINC – Faculdades Integradas Coração de Jesus E-mail: fabricia.bricamadeira@gmail.com Resumo A oralidade é uma das características mais primárias da raça humana. Através da tradição oral ocorre a preservação da cultura e transmissão de valores, e a ausência dessa narrativa causa uma pobreza de experiências. Este estudo propõe uma reflexão sobre a importância da oralidade e também sobre a sua possível extinção no mundo moderno. Palavra-chave: tradição oral, memória, narrativa. Se levarmos em conta os estudos de Sigmund Freud em A interpretação dos sonhos que diz que tudo no ser humano inicia pela própria boca, podemos dizer que a oralidade é uma das características mais primárias da raça humana. As primeiras relações com o mundo externo, por exemplo, acontecem na fase oral, ainda na infância. A cultura oral sempre esteve próxima do povo e, por esse motivo, supõe-se que talvez essa seja o nosso início de uma forma literária. As pessoas encontravam-se em frente das casas, nas praças, nas feiras, ou mesmo em volta de uma bela fogueira no pasto ou do fogão de lenha na cozinha da casa, e ali trocavam "causos", falavam das histórias da cidade, de familiares, etc. Era um momento de confraternização e lazer, em que os mais novos ouviam atentas as histórias dos mais velhos. Histórias que um dia estes senhores de longa idade ouviram de seus pais, tios, avós, ou mesmo vivenciaram em algum momento da vida. Nestas prosas as histórias se faziam e refaziam através de fragmentos de memórias e experiências. Mesmo que recontadas por vezes elas não perdiam seu brilho, todos desejavam saber a história. Nesse entendimento, podemos dizer que numa sociedade em que a palavra é importante, o intérprete é valorizado porque sua voz carregava a tradição. Numa sociedade oral reconhecemos a fala como um meio de preservar a sabedoria dos seus ancestrais. Então, podemos dizer que a tradição oral preserva o testemunho transmitido de uma geração a outra. Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas, também, como um meio de preservação da sabedoria dos antepassados, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave, o que denominamos de tradição oral. A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra. Existem ainda diferenças entre história oral e tradição oral. Segundo Freitas, a tradição oral ampara-se em narrativas dependentes de memória; já a história oral, limita-se a entrevistas porque esta trabalha com elementos de memória coletiva e demanda tempo mais amplo de observação da cultura do outro. Vansina complementa que a tradição oral tem suas características particulares, que são o verbalismo e a sua maneira de transmissão, diferente das fontes escritas. Essa narrativa está sujeita a certas circunstâncias impostas pela história, a sua brevidade: a limitação da memória de que, conta o tempo disponível para a contação; e a simplicidade da roda. Bakhtin diz que a fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, que estão sempre ligadas às estruturas sociais. Essas circunstâncias determinam a limitação da quantidade de personagens, as características vagas e estereotipadas da história, a diminuição e imprecisão de referências de espaço e tempo, além da simplificação da ação. Na tradição oral o conto não tem uma autoria definida, porque ela constitui-se de uma criação coletiva, ou seja, cada contador introduz pequenas alterações, ocasionando modificações na história. Daí vem o velho ditado popular "Quem conta um conto, aumenta um ponto". Apesar desta metamorfose, ele não perde o sinal de origem. O narrador, ao contar o conto, transformava a história conforme seu entendimento e memória. Além disso, a história tinha o seu toque pessoal que era impossível de ser imitado por outro contador: a entonação de voz, os tipos de linguagem adotados para contar a história, como movimentos corporais, mímicas, etc. E os participantes na roda do conto, cercavam a narrativa com perguntas e comentários impedindo que o contador dessa vazão a sua imaginação criadora. Existem casos de uma pessoa citar duas tradições diferentes para relatar o mesmo processo histórico. Na sua pesquisa, Vansina encontra informantes de Ruanda que relataram duas versões de uma tradição sobre os Tutsis e Hutus; uma, segundo a qual, o primeiro Tutsi caiu do céu e encontrou o Hutu na terra; e outra, segundo a qual Tutsi e Hutu eram irmãos. Em ambas o processo histórico, o assunto, era o mesmo apesar das variações de versão. Vale lembrar que nem toda informação verbal é uma tradição, como o testemunho ocular e o boato. No testemunho ocular, que tem grande valia porque se trata de algo imediato, não transmitido, mas visualizado, sendo os riscos de distorção do conteúdo mínimos. Aliás, toda tradição oral legítima deveria, na realidade, fundar-se no relato de um testemunho ocular. Já o boato deveria ser excluído. Vansina fala que embora transmita uma mensagem, o boato é resultado, por definição, do ouvir dizer. Por fim, ele se torna tão distorcido que só pode ter valor como expressão da reação popular diante de um determinado ocorrido, dando origem a uma tradição, quando é repetido por gerações posteriores. Daí resta, por fim, a tradição propriamente dita, que transmite as evidências para as gerações futuras. Com a vinda da escrita, os contos populares passaram por uma adaptação conforme a imaginação de seu autor, diferenciando-se do seu original na tradição oral. Benjamin denuncia e responsabiliza o surgimento do romance, no início do período moderno, pela morte da narrativa. Com o surgimento da imprensa, e do romance, a narrativa tornou-se arcaica. Ele afirma que “se a narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio”. Também, segundo o filólogo, percebemos isso, por exemplo, quando pedimos num grupo para que alguém narre alguma coisa. Todos ficam embaraçados, muitos não conseguem expressar-se, seja por vergonha ou por simplesmente não saber como o fazer. É como se estivéssemos privados da faculdade de compartilhar experiências. Enquanto o romance é produto da escrita, a narração é produto da voz e da ação. A alma, a mão e os olhos formam um conjunto interativo na narração. Na narrativa a mão intervém com gestos aprendidos na experiência do trabalho. No romance isso não existe. Bondía relata que experiência é tudo o que nos passa, o que nos toca. Nosso mundo está pobre de experiências. Um dos motivos que levam ao enfraquecimento da experiência, e, consequentemente, da narrativa, é o excesso de informações. Bondía ainda afirma que “a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase uma antiexperiência”. O sujeito da informação carrega muitas informações, passa o tempo buscando essas informações, porém, esse desejo intenso de manter-se informado, faz com que nada lhe aconteça de novo. Por esse motivo, devemos separar experiência de informação. E depois desta informação, vem a necessidade de opinião. E a necessidade de opinião desfaz qualquer possibilidade de experiência, e assim nada nos acontece. Outro motivo que leva a ausência da experiência é a falta de tempo. Benjamin alega que a narrativa necessita do ócio para existir. Em nossa atual sociedade somos bombardeados por informações a cada segundo e não temos tempo para refletir sobre elas. Bondía afirma que “a velocidade com que nos são dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade impede a conexão significativa entre acontecimentos”. A história se perde quando não são conservadas e quando não são recontadas por quem as ouve. Leskov reflete, em uma carta, que “a literatura não é para mim uma arte, mas um trabalho manual”. Benjamin complementa dizendo “o homem de hoje não cultiva o que pode ser abreviado. Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa”. Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p 15. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov: magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. v.1, p.197-221. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n.19, jan./abr. 2002, p.20-28. VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. História geral da África: metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática; Paris: UNESCO, 1982. v.1., p 141